Público/Opinião/
SB 08DEZ07
A relatividade da liberdade
É lapidar que, para o Governo do PS, a segurança prevalece sobre a liberdade
O ar de Rui Pereira a rir, com o sorriso estampado na cara, visível, mesmo para lá da mão que lhe tapava a boca e em que apoiava a cabeça, manifestando corporalmente cansaço de estar no Parlamento a debater com os deputados, choca. O misto de sarcasmo e tédio com que o ministro da Administração Interna se apresentou, em nome do Governo com colegas seus do executivo a seu lado, incluindo o primeiro-ministro, que assistiu à parte inicial do debate sobre a qualidade da democracia em Portugal proposto pelo PCP, é revelador de uma atitude que é o corolário lógico do securitismo que orienta este Governo.
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E esse conceito securitário que orienta o Governo português, bem como os seus homólogos da União Europeia, a Administração americana e em geral os governos democráticos é o regresso a uma musculação da democracia, a um Estado policial, ao uso da força e da sua insinuação, o uso da autoridade para intimidar os cidadãos, em jeito de ameaça, preventivamente, intimidatoriamente. Um conceito de segurança que se expandiu e se instalou nos governos democráticos após o 11 de Setembro, mas que estava já presente em políticas como Schengen.Um conceito de controlo e de policiamento da sociedade, que representa um fechamento, um cercear de sistema de liberdade individual que caracteriza as democracias liberais e que pode ser simbolicamente exemplificado com o debate vivido na Grã-Bretanha sobre a adopção de um documento de identificação obrigatória, tipo bilhete de identidade.É esse debate que, sob outros exemplos - perseguições na administração pública, abusos da polícia sobre direitos constitucionais dos cidadãos, etc. -, decorreu esta semana na Assembleia da República, o debate sobre a qualidade da democracia, ou seja, sobre o tipo de democracia que se vive e que está a ser introduzida em Portugal.Há uma afirmação feita pelo ministro Rui Pereira, na tribuna parlamentar, que resume o debate: "A liberdade e a segurança são duas faces da mesma moeda. O exercício de direitos tem limites". Aqui está contido todo o problema que se vive hoje sobre o que é democracia e o que é a essência da democracia, a liberdade. E é lapidar que, para o Governo do PS, a segurança prevalece sobre a liberdade. A liberdade é relativa. Sempre. Por isso a liberdade é frágil. Não há liberdade absoluta. E até a cultura popular já introduziu o conceito: "A minha liberdade acaba onde começa a liberdade do outro". Também é indefensável a ideia de que há liberdade sem segurança. Claro que não há. Se não me sentir segura, não exerço a minha liberdade em pleno direito.Mas o grande debate, o grande desafio que se coloca às sociedades democráticas hoje é saber qual o ponto de equilíbrio entre estes dois conceitos. E qual o ponto de não retorno do descambar num Estado autoritário, policial - e atenção que não estamos a falar de regresso à ditadura, é demagógico e irrealista sustentar que questionar a defesa de um Estado policial significa uma acusação de tentativa de regresso à ditadura de Salazar ou a implantação de qualquer outra ditadura.É por isso que é ridículo e até desonesto intelectualmente ouvir o que disse, a encerrar a discussão plenária, Alberto Costa, outro ministro que deu a cara pelo Governo neste debate - é interessante perceber que o executivo dá tanta prevalência à Segurança Interna sobre a Justiça como pilar caracterizador da qualidade da democracia, que o ministro que esteve em primeiro plano no hemiciclo foi Rui Pereira.E soa quase a provocação ouvir Alberto Costa perguntar se alguém acredita que a liberdade está em causa em Portugal. Claro que o que está em causa em Portugal, com a atitude securitária, intimidatória, com a tentativa de regresso de uma cultura de medo, não é, como muito bem sabe Alberto Costa, a existência de liberdade, mas, sim, qual o tipo de liberdade e a liberdade em que essa liberdade pode ser vivida. E é tanto mais absurdo ver esta entorse à questão ser feito por Alberto Costa, quanto Alberto Costa viveu na pele o que é o Estado policial, o autoritarismo da ditadura de Salazar e sabe pessoalmente o que foi a PIDE/DGS. Por isso, Alberto Costa sabe, cristalinamente, que não é correcto fazer confusões e demagogias como as que estão inerentes à pergunta que despudoradamente fez na Assembleia.Assim como sabe que não é normal que uma manifestação, legalmente autorizada pelo governo civil, deve ser protegida pela polícia como um acto de exercício de direitos e deveres de cidadania e de democracia. E não vigiada, policiada. E não com os agentes da autoridade a questionarem os participantes, a identificarem os manifestantes como se de criminosos se tratasse. Por isso, Alberto Costa devia ter pensado duas vezes antes de perguntar o que perguntou. Sobretudo, porque o fez depois de o seu colega ministro da Administração Interna ter afirmado que a polícia só identifica suspeitos de crime e, se houver abusos, deve ser feita queixa da polícia, quando a questão da identificação de manifestantes lhe foi colocada pela deputada do Partido "Os Verdes", Heloísa Apolónia.É que é no mínimo estranho ver ministros de um Governo do PS defender que a polícia só identifica suspeitos de crime, quando se está a falar do exercício do direito constitucional de manifestação. Isto porque, do ponto de vista teórico, é possível tirar a conclusão de que, se Rui Pereira disse aquilo e não afastou liminarmente a possibilidade de identificação numa manifestação legalmente autorizada, é porque considera que, teoricamente, um manifestante pode estar a cometer um crime. Logo, Alberto Costa pensa o mesmo. Logo, todo o Governo, que Rui Pereira representava naquele momento, pensa o mesmo.E é de facto relativizar a relatividade já de si inerente à liberdade considerar como normal que um representante da autoridade do Estado, numa manifestação, em vez de proteger o cidadão no exercício pleno desse seu direito constitucional e democrático, possa dirigir-se-lhe como suspeito de crime. Jornalista
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(Remetido de DEMOCRACIA E LIBERDADE)
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